Armazenamento Cheio

Anna de Oliveira
3 min readJun 9, 2023

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Duvido 256Gb guardar a vida de alguém.

Tenho convivido diariamente com um lembrete de “armazenamento cheio”. O iPhone continua me dando puxões de orelha a cada duas semanas me alertando de que preciso gerenciar melhor o espaço. Tenho tentado, juro.

"Armazenamento Cheio"

Aprendi lidar com essa pressão de que não, nunca terá espaço suficiente. Alguns anos em alerta constante me fizeram adquirir algumas técnicas para não acumular muita lembrança visual e para que esse celular simplesmente não parasse de funcionar porque se afogou em tanto arquivo. E não, não me diga para diminuir a qualidade dos meus registros muito menos sentimento porque sei dos limites de 256 Gigas. Não vou entrar nesse mérito se a minha existência toda é pautada na intensidade. Não me venha com comportamentos comuns, falas superficiais e sentimentos rasos.

Voltando as técnicas, vamos lá: apagar capturas de tela ou fotos repetidas está dentro das coisas que faço diariamente. Tipo escovar o dente? Então.

Aqui, organizo em 3 categorias de aplicativos, basicamente. Os aplicativos que uso diariamente, aqueles semanalmente e outros que a gente baixa pela primeira vez por algum motivo mas não dura mais de uma semana. Aplicativos semanais e aplicativos novos quase não duram por aqui. são os primeiros que vão embora em uma situação emergencial de registro. Sabe aquele momento, mais espontâneo e mais sincero? Você começa a gravar e é interrompido mais uma vez pela notificação mais doída de receber — sim, pior que ex ou cliente te mandando mensagem fora de horário. Aquela que aparece só pra te avisar que não, você não vai poder ter o registro gráfico daquilo. A dor e o sabor de guardar o celular e ironicamente viver aquele minuto através da única lente, por hora, ilimitada de memória.

Posso te contar uma coisa que ninguém nunca te contou? Sim, presta atenção: existe uma sutil arte de registrar graficamente momentos para se por consciente e presente naquele lugar. Exercício de observação. É quase como se meus pés tocassem a terra e eu pudesse sentir que ali estou. Talvez seja uma habilidade desenvolvida pela versão de mim que mais sofreu com a ansiedade e teve dificuldade em algum momento de estar em uma simples conversa com amigos na mesa de um bar.

Comecei a ver sentimento em cada quadro da minha vida. Dos mais doces e coloridos, aos mais amargos e sem vida. Ao longo desse tempo, acumulei algumas nuvens irreais que prometem guardar toda a minha existência afetiva de forma externa ao aparelho. Desejo até hoje desesperadamente uma nuvem pra conseguir gerenciar meus sentimentos e todas as histórias que quero um dia lembrar.

Sinto como se estivesse sempre no limite das minhas lembranças. Logo eu, admiradora da memória infinita, dos conhecimentos irredutíveis e aprendizados eternos da nossa ancestralidade. A memória-finita e digital nunca será suficiente para mim. Talvez seja essa a maior diferença entre as inovações tecnológicas e os seres humanos. Nossa capacidade elástica e orgânica de armazenamento e tudo que é construído em nossa essência a partir daí. Duvido 256Gb guardar a vida de alguém.

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Anna de Oliveira

diretora de cena, comunicadora e artista visual-intuitiva