"Não pensa, só pula!"

Anna de Oliveira
4 min readJun 5, 2023

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A gente nunca sabe por onde começar. A verdade é que se eu soubesse, de fato, talvez experimentaria tão pouco, inventaria menos ainda e pensaria a respeito de – quase – nada.

foto @annaugs

Paro para pensar e conto pelo menos 5 anos desde a viagem em que tudo re-começou. Ou talvez antes, quando minha psicóloga me pediu para descrever as crises de ansiedade. Fui a Guarapari no primeiro dia do ano e passei uma semana com minha irmã e minha sobrinha. Tudo é completamente diferente quando tem criança por perto. E como tudo muda quando a gente é criança.

Foi na praia, em meio às pedras e toda a imensidão azul-sonora do mar, que comecei a me questionar sobre o tempo, o que faria com ele e como poderíamos um dia, se quer, fazer as pazes. Era época em que eu começava a entender a ansiedade dentro do meu corpo e passei a vomitar palavras sem vírgula, sem respiro e muito menos ponto final.

Me fiz criança com a minha sobrinha e deixei de lado os artifícios que me faziam perder a capacidade de “olhar pela primeira vez”. Acordei com o sol e saí correndo sem celular. Vi o sol beijar o mar e, consequentemente, me abraçar. Ali dentro, nadei com meu olhar e refleti sobre cada onda, cada gota, cada grão de areia. Senti a água em pelo menos quatro temperaturas diferentes, e isso nenhum termômetro consegue mensurar. Vi – e senti – a onda tremer ao passar uma tartaruga bem perto de mim. Nada é por acaso, e hoje enxergo essa força estranhamente bonita que me faz querer colocar em registros cada sentimento vivido.

Seja em uma foto, em um vídeo, seja nas conversas registras na minha memória, seja em um dos bilhetes colados na minha parede, ou em um dos incontáveis cadernos que coleciono (alguns mais cheios e outros mais “dispersos”). A natureza não me fez ansiosa. Levei um tempo para entender que a arte seria meu começo, meio e fim, e que não haveria outra opção.

O desejo incessante e apaixonado pelo registro não é recente, só meu ou banal. Essa vontade intensa tem raiz forte, de família, de geração em geração. Foi meu pai quem me ensinou a eternidade do material afeto-visual que ele captara durante toda a nossa – e anterior a minha – infância. De todas as coisas que possuo e tenho em vida, a minha maior certeza é o acervo de sentimentos que temos compartilhado, um passado-presente que vive em mim pulsante aqui-agora.

A gente cresce e parece que o tempo encurta, corre ou simplesmente contrai. As coisas não tem mais a grandiosidade que tinham, ou um quarto parece “menos colorido”. O natal perde a graça, os adultos se tornam cada vez mais impacientes e nada, nada mais parece suficiente.

Um mês antes do meu primeiro ataque de pânico, havia decidido pousar meu olhar-atenção sob uma câmera que eu precisaria respeitar. Um convite do tempo para o tempo. A fotografia analógica, sob uma ótica sensível e minuciosa, me faz trabalhar no tempo de cada uma das 36 (ou 24) poses que o filme me dá. O cuidado incansável até que se encaixe cada detalhe, cada sombra e cada feixe de luz. Aprendi a respeitar o tempo dela, mas, indo além, entendi que não sabia respirar. Levei um tempo para entender a beleza por trás do tempo de cada coisa, e por isso às vezes ficava sem ar, até entrar em ritmo com o meu próprio coração.

Percebo que a vontade de contar histórias-sentimentos sempre esteve ao meu lado, caminhando de mãos dadas com tudo que eu quisesse fazer. Era como se, no fundo, eu sempre soubesse que não, meu corpo não sustenta o fazer por fazer, e que tudo bem sentir cada coisa que eu me propusesse viver. Aquela força estranha que me levou a escrever 5 anos atrás, me coloca aqui-agora para criar e desaguar em meio a palavras não tão soltas, frases inventadas e parágrafos alinhavados em sentimentos intensamente vividos.

Uma voz de criança – não tão criança porque não me aparenta medrosa ou qualquer coisa indefesa ou imatura – ecoa na minha cabeça em alto e bom som. Foi no ano passado, um dia de sol, calor e churrasco. Estávamos em cima de um trampolim que dava para uma piscina funda. A altura era suficiente para me fazer ir e voltar, e desistir de pular. Até que essa tal voz me diz e fala comigo até hoje: “Quer uma dica?”, eu aceito e presto atenção. “Não pensa, só pula”. Fica tudo diferente quando a gente escuta a nossa criança.

A escrita anteveio qualquer ideia, história ou vontade que eu possa sequer definir com um marco temporal. Foi por necessidade, grito e urgência. Foi prescrição ancestral.

Para tudo aquilo que a gente não sabe por onde começar, mas escuta a direção; para tudo aquilo que a gente faz como grito da alma; para tudo aquilo que nos atravessa e nos transforma; para tudo aquilo que sou: Não pensa, só pula.

Que gostoso o frio na barriga!

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Anna de Oliveira

diretora de cena, comunicadora e artista visual-intuitiva